Francisco de Assis França nasceu em 13 de março de 1966, no Hospital Evangélico do bairro da Torre, em Recife. Seu primeiro endereço foi em Santo Amaro, mas ainda muito criança mudou-se para Rio Doce, em Olinda, onde permaneceu até idade adulta. Filho de Dona Rita e Seu Francisco, assim que saiu da maternidade atravessou o Rio Capibaribe de barco nos braços da mãe. Significativo e poético, como tinha de ser. Na infância alegre e travessa da Rua do Girassol, o menino Chiquinho cresceu na companhia dos pais e dos irmãos Goretti, Jeferson e Jamerson.
No final da rua de sua casa havia um mangue. E quando Chiquinho não estava “aperreando” Dona Rita com alguma “trela”, ou insistindo para os irmãos mais velhos o levarem junto nas festinhas, era lá que ele e os amigos se enfiavam para catar caranguejo. Com os trocados que conseguia depois de vender os caranguejos na feira, curtia os bailes funks da época.
Antes de conceber a ideia do que viria a ser o movimento mangue, participou como vocalista em três projetos: Orla Orbe, Bom Tom Rádio e Loustal. Trabalhava na Emprel, uma empresa municipal de processamento de dados, quando conheceu Gilmar Bola 8. Gilmar o apresentou ao espaço cultural Daruê Malungo, onde passou a ensaiar com o grupo Lamento Negro. Desse encontro nasceu Chico Science e Lamento Negro.
Com o tempo, e o conceito de mangue como um movimento musical criado por Chico reverberando, outros artistas foram chegando e contribuindo com a banda. Em sua última formação antes da partida de Chico, a banda contava com Jorge Du Peixe, Gilmar Bola 8, Toca Ogan, Gira, Dengue, Lúcio e Pupillo.
Às ideias iniciais de Chico juntaram-se Fred 04, Renato L, Mabuse, Dolores e outros amigos empolgados e dispostos a somar na construção de uma cooperativa artística. Uma nova cena cultural surgia, e com ela o lançamento do “Manifesto Caranguejos com Cérebro” em 1992, escrito brilhantemente por Fred. Liderado por Chico, o movimento mangue em Recife foi tão importante e agregador que em pouco tempo outros setores artísticos também foram influenciados pelo movimento. Nas artes plásticas, no cinema e na moda, a cena também era uma referência. Um caldeirão criativo jamais antes visto fervia no Recife e, em ebulição, ganha ganhava o Brasil.
A mistura do que é nosso --brasileiro, e principalmente regional--, com a música mundial, foi o mote certeiro de Chico na gênese da sonoridade da Nação Zumbi. O “coco de roda”, o “maracatu”, a “ciranda”, a “embolada” e o “samba” aliados ao “rock”, “hip-hop”, “funk” e música eletrônica ganharam destaque nas suas composições, sempre muito bem temperadas de críticas sociais. A batida do mangue rapidamente conquistou admiradores, seguidores e reconhecimento na mídia nacional e internacional. Em 2 de fevereiro de 1997, prestes a completar 31 anos, Chico perde a vida em um trágico acidente de carro, exatamente no limite entre Recife e Olinda. De um lado, o mangue. Do outro, o mar. Chico entre os dois. Conduzido por Nanã e Iemanjá, o malungo deixa, para além da saudade, de sua figura cativante e genial, um legado histórico que seguirá sempre vivo, inspirando gerações.
Formado em jornalismo pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Juarez Fonseca iniciou sua carreira em 1970. Sua paixão pela música fez com quem trilhasse uma trajetória brilhante, passando por todas as etapas da profissão e indo muito além, à medida em que sua dedicação e talento lhe abriam caminhos e a música o convidado a entrar. Fez reportagens, escreveu livros, apresentou programas de TV e rádio, participou de curadorias, produziu artistas e álbuns, dirigiu shows... Por toda sua contribuição, tem sido reconhecido, citado e premiado como uma das grandes referências do jornalismo cultural e crítica musical do Brasil. E o passar do tempo, ao mesmo tempo em que lhe reforça a capacidade de honrar a tradição, revigora-o com sua generosidade para receber o novo. Para a música, ele é todo ouvidos.
Ao longo de mais de 52 anos, atuou em ramos diversos, sempre colaborando com a divulgação da música e sua valorização. Trabalhou em vários veículos de Porto Alegre, como o Zero Hora, onde ficou de 1970 a 1996, voltando como colunista em 2013, depois de ter desempenhado as funções de crítico de música, editor do Segundo Caderno e editor de Cultura. De lá para cá também foi comentarista de música da Rádio Gaúcha, da RBS TV e da TVE, editor de Cultura do Jornal da Universidade/UFRGS e colunista de música do jornal ABC Domingo, da revista Aplauso. Seus textos foram publicados em veículos nacionais como revista Veja, Jornal O Globo e Jornal de Música. Ainda colaborou com sua categoria, integrando o Conselho de Ética do Sindicato dos Jornalistas do Rio Grande do Sul.
Paralelamente à trajetória jornalística, dedicou-se a pesquisar a música brasileira, produzir shows e álbuns, entre eles o long play coletivo Paralelo 30, e trabalhos de artistas reconhecidos como Renato Borghetti, Telmo de Lima Freitas, Leopoldo Rassier, Victor Hugo e Barbosa Lessa. Escreveu os livros “Ora Bolas”, sobre Mario Quintana; “Gildo de Freitas, o Rei dos Trovadores”; “Neugebauer, uma História”, sobre a primeira fábrica de chocolates do Brasil, fundada em 1891, em Porto Alegre, e o volume de entrevistas Aquarela Brasileira. Integrou comissões de seleção do Projeto Rumos – Itaú Cultural, do Programa Natural Musical e do Projeto Pixinguinha.
Com credibilidade e reconhecimento, foi convidado a ser coordenador de Música da Secretaria da Cultura de Porto Alegre, membro do Conselho Estadual de Cultura do Rio Grande do Sul, chefe da assessoria de imprensa da Secretaria da Cultura do Estado e membro do Conselho Deliberativo da TVE. Seu vasto conhecimento na área musical também o levou a compor o júri dos principais festivais no RS e do Brasil, entre eles “Califórnia da Canção”, “Moenda”, “Musicanto”, “Coxilha”, “Seara”, “Tertúlia”, “Tafona”, “MPB Shell” e “Festival dos Festivais” e comissões de seleção do Itaú Cultural, da Natura Musical e da Funarte.
Aos 76 anos, encontra-se em plena atividade. Entre seus últimos trabalhos está a curadoria do projeto digital “Anos 10”, selecionado na Lei Aldir Blanc, com os músicos Pâmela Amaro, Filipe Catto, Glau Barros, Nino Prestes e 50 Tons de Pretas.
Maria Madalena Correia do Nascimento nasceu em 12 de janeiro de 1944, na Ilha de Itamaracá, em Pernambuco. Criança levada, adorava brincar nos sítios do lugar com os irmãos e despertou cedo para a musicalidade, sobretudo porque sua mãe, Matilde Maria, participava ativamente dos cocos de roda – folguedo popular bem mais antigo que a ciranda de adultos. Ela descobriu e se encantou pelo balanço da ciranda, passando a frequentar as rodas dos cirandeiros. Já adulta, assumiu a persona de Lia de Itamaracá, a partir de “Quem me deu foi Lia”, ciranda registrada pelo Mestre Antônio, com melodia de sua autoria.
Negra e alta, já chamava atenção por seu porte vistoso e imponente passou, aos poucos, a ser referência na condução e divulgação da ciranda em festivais promovidos no estado de Pernambuco nos anos 70 e 80. O reconhecimento além das fronteiras do estado, porém, ficava restrito ao personagem folclórico que só existia naquela canção: “Essa ciranda quem me deu foi Lia/Que mora na Ilha de Itamaracá”. Foram maus bocados até o reconhecimento.
Mulher, negra, pobre e semianalfabeta, começou cedo a trabalhar como empregada doméstica para ajudar a mãe no sustento da família. Ainda mocinha e consciente da dificuldade de viver como artista, trabalhou em um restaurante onde cumpria duplo expediente. De dia, era a cozinheira de mão cheia do restaurante Sargaço. À noite, deixava aforar a verdadeira Lia, uma enorme sereia negra, uma diva que soltava a voz e convidava a todos para dançar ciranda. A visibilidade poderia trazer a fama, mas foi atravessada por oportunistas. Foi assim que em 1977 gravou o LP intitulado Lia de Itamaracá – A rainha da ciranda (Tapecar Produções). Como pagamento, recebeu poucas cópias do disco e um desencanto com a carreira que iniciava.
Compreendia as dificuldades de atuar como artista da cultura popular e de sobreviver só com a ciranda. Com a experiência adquirida como cozinheira, Lia pediu emprego a um político de projeção. Passou, então, a ser merendeira de uma escola no bairro de Jaguaribe, missão que desempenhou até se aposentadoria com todo o carinho e afeto que ela, certamente, destinaria também aos filhos que, infelizmente, não vingaram.
A amargura por não crescer como artista e se sentindo abandonada e desprestigiada, mergulhou suas mágoas na bebida. Com a ocorrência do incêndio em sua casa, no final da década de 80, desceu ao fundo do poço. Novamente, precisou gastar mais uma parcela de sua dignidade e recorreu aos donos do poder em busca de auxílio para refazer sua vida. A casa que, na verdade, era um mocambo de taipa coberto com palha de coqueiro, foi reconstruída com tijolos noutro terreno, mas a amargura pelas desilusões artísticas continuava. Não ter meios de libertar a artista que trazia dentro de si era algo que lhe sufocava. Nessas horas, o apoio de Antônio Januário, o Toinho, seu companheiro de vida e de palco, foi fundamental para que ela não sucumbisse de uma vez.
O Manguebeat, capitaneado por Chico Science e Fred Zero Quatro nos anos 90 abriria as portas para que Lia pudesse brilhar. O movimento musical que promoveu a fusão do rock com ritmos da cultura popular como maracatu, coco, ciranda e embolada, tirou Lia de Itamaracá do limbo. Ela tinha quase 50 anos e seu talento, finalmente, teria uma chance real. Nessa época conheceu Beto Hees que se tornou seu produtor. Com o know-how conquistado em uma década atuando na Europa, Hees conduziu a carreira da cirandeira de modo a restaurar a sua importância no cenário cultural. A artista se livrou de uma vez por todas da fuligem da frustração e foi reconduzida ao seu posto de Rainha da Ciranda, ao mesmo tempo em que ajudava a difundir essa cultura.
Em 1998 Lia se apresentou no festival Abril Pro Rock, celebrada pelo Manguebeat. E antes da virada do século XX, lançou em 2000, no Brasil e na França, o CD Eu sou Lia, reunindo entre as faixas alguns registros ao vivo gravados no Projeto Vozes do Mundo. Conhecida por sua generosidade, Lia trouxe para junto de si, a fim de acompanhá-la em suas apresentações, as cirandeiras Dulce e Severina. Filhas do precursor Antônio Baracho, que, em que pese a rica trajetória que tiveram ao lado do pai, andavam esquecidas e fora do circuito. A parceria maravilhosa dura até hoje.
Com a ajuda de amigos e admiradores, Lia de Itamaracá ergueu em 2005, na orla de Jaguaribe, aquele que é considerado por ela mesma uma de suas obras mais importantes: o Centro Cultural Estrela de Lia (CCEL). O espaço de estrutura simples, que ganhou o título de Patrimônio Imaterial de Pernambuco, servia como ponto de preservação e difusão da ciranda e palco das mais diversas manifestações culturais e tinha um cunho social relevante para a população carente da ilha, pois oferecia de modo gratuito cursos profissionalizantes e palestras de preservação ambiental e de educação sexual. Por falta de apoio desde 2013, a estrutura do CCEL desabou no ano seguinte, e, atualmente, há em andamento um novo esforço da cirandeira para que ele seja reconstruído e volte a funcionar com a efervescência dos bons tempos.
A figura majestosa de Lia, o seu porte de deusa africana – recentemente foi certificado que ela compartilha ancestralidade genética maternal com o povo Djola da Guiné-Bissau – sempre foi um chamariz para diretores de cinema e de televisão. Seja atuando como ela mesma ou encarnando algum personagem, a cirandeira já tomou parte em diversas produções como as minisséries Riacho Doce (1990) e Memorial de Maria Moura (1994); nos filmes Parahyba mulher macho (1994), Recife frio (2009) e Sangue azul (2015); e em documentários a exemplo de Eu sou Lia (2003) e O mar de Lia (2010).
Senhora de brilho próprio e artista de grande importância no cenário cultural brasileiro, Lia de Itamaracá levou e continua levando seu canto e sua dança para os mais distantes recantos do seu país. Também já excursionou pela Europa, sempre carregando consigo seu sorriso farto e sua alegria contagiante.
Em 2004, numa cerimônia realizada em Brasília, Lia recebeu a medalha de Comendadora do Mérito Cultural instituída pelo Ministério da Cultura. No ano seguinte, ela foi reconhecida por lei estadual Patrimônio Vivo de Pernambuco e, em 2023 será homenageada pelo Prêmio Profissionais da Música, na modalidade Educação por toda a sua contribuição na valorização e manutenção da importante manifestação que tão lindamente ela representa, honra, divulga e compartilha.
Depois de anunciar o nome do saudoso Chico Science como homenageado da modalidade Criação é com um sabor especial que o Prêmio Profissionais da Música revela mais um nome a ser celebrado nesta 7ª edição: Renato Matos.
Renato, para os brasilienses, dispensa maiores apresentações, graças a sua permanente, criativa e produtiva fusão de linguagens artísticas: às vezes música e poesia, em outras artista plástico, ator e performer. Em qualquer uma delas, puro talento e presença.
Diante destes excessos que "fizeram a cabeça" de tantas gerações culturais da capital do Brasil, é com muita honra e felicidade que nos prepararemos para saudá-lo em abril de 2023, representando as categorias agrupadas, advinhem em qual modalidade? Sim, para quem pensou Convergência. Afinal, musicalmente falando, podemos citar alguns legados de sua rica contribuição para a sensibilização e percepção musical dos habitantes ávidos por cultura na capital de todos e todas brasileiras nos últimos 40 anos ou mais.
Se você tem alguma história desse ícone da cultura made in Brasília, fique à vontade para nos contar. De minha parte, sou testemunha de algumas. Destaco uma presenciada em 1991, quando trabalhava na Ocarina Produções, produtora responsável pela execução do projeto Verão Cultural do ParkShopping. Ali, ao lado de sua banda "Acarajazz", composta por fenomenais instrumentistas de Brasília, pela primeira vez ouvi os versos "Ahhh...essa minha solidão celular". Acontece que os efeitos da revolucionária ferramenta tecnológica ainda eram distantes do nosso unviverso, mas Renato já via algo ali...
Renato também foi fundamental para a disseminação do reggae no cerrado. O estilo, que sonorizou muito a sua maneira, está amplamente registrado na obra desse baiano-brasiliense que certamente, é uma grande referência no desenvolvimento desta célula musical e conceitual na capital federal. Foi muito graças a ele que o reggae acabou por influenciar tantos músicos da cidade, ganhando uma sonoridade tão própria capaz de conquistar todo o país. Renato está, literalmente, na raíz do movimento.
"Um telefone é muito pouco" para divulgar nosso ilustre homenageado. Portando, vamos de email, redes sociais, whatsapp, boca a boca e qualquer outro recurso disponível para espalhar a novidade.